O FENTEPP
28/08/2010
CRÍTICA - Uma questão de tirar o sono
A obra de Kafka é marcada pela estranheza. Suas personagens, submetidas a uma constante pressão emocional, estão imersas num mundo de tal forma organizado e alienante que as categorias de tempo, espaço e causalidade se embaralham irremediavelmente. As narrativas kafkianas constituem-se como tentativas falhadas de construção de um sentido, que escapa ao entendimento de suas personagens. Estas, reduzidas quase à deformação, são avassaladas por sua vida interior, que ganha dimensões absolutas. Nesse mundo de imagens deformadas, o herói kafkiano, tenta em vão reconhecer sua humanidade, mas fracassa.
Kafka dizia que suas narrativas eram uma representação de sua vida onírica. A Cia. Troada, de Campinas, atenta a essa provocação, se inspira livremente no romance “O Processo”, para criar A Porta, espetáculo que narra uma noite de insônia – a terceira – na vida de Gregor K. (junção emblemática de duas personagens do autor tcheco). Em seu quarto, sem saber ao certo se sonha acordado ou se está dormindo, a personagem se vê às voltas com figuras deformadas que lhe submetem a situações grotescas, obrigando-a a cumprir ordens sem nenhuma justificativa aparente.
Para intensificar o apagamento das fronteiras entre realidade e sonho, de forma a criar no público a impressão de estar submerso na mesma atmosfera kafkiana de irrealidade contida em sua obra, a encenação se vale de máscaras que têm a virtude de alterar as dimensões do corpo humano. Assim, as personagens surgem estranhadas por uma deformidade que potencializa sua ação arbitrária.
Apesar da contundência das primeiras imagens, esse efeito não está plenamente assimilado pela encenação. É nítido o esforço dos atores em adequar sua gestualidade às exigências da máscara, porém, ainda prevalece certo amesquinhamento naturalista de sua corporeidade em face das potencialidades que a amplificação das feições da máscara lhe faculta. A justeza dessa apropriação levanta um novo desafio, que diz respeito à dramaturgia, ponto frágil e problemático do espetáculo.
Uma narrativa em off nos dá notícia da insônia de Gregor K. Sua voz nos esclarece a respeito de sua confusão mental e cria as coordenadas de “leitura” do que vem a seguir. Uma vez estabelecidas as condições para o embaralhamento das referências de tempo, espaço e causalidade, a narrativa cumpre sua função dramatúrgica. A partir dessa primeira intervenção, no entanto, as demais inserções em off tornam-se dispensáveis, já que redundam a mesma informação.
Paradoxalmente essa opção da encenação está justificada na medida em que transpõe para a cena o narrador kafkiano e sua dicção burocratizada, isenta de qualquer contaminação emocional, uma voz que se esforça em adequar-se à lógica impessoal de um mundo administrado. Uma voz, que nos termos de Adorno expõe a monstruosidade desse mundo exatamente pela naturalidade com que o apresenta.
Diante do exposto, então é lícito perguntar: “onde está o problema?” Não é uma questão de solução simples porque diz respeito à dramaturgia de cada quadro em particular. Para quem conhece “O Processo”, é fácil identificar as personagens que transitam pela encenação. Além de Josef K., surgem o advogado Huld e sua enfermeira Leni, os oficiais que lhe trazem uma intimação e esboços de Fraülein Bürstein e Frau Grubach, diga-se de passagem, caracterizados de forma exemplar. Contudo, os quadros não vão além da apresentação superficial dessas personagens. Suas ações se diluem em jogos pueris, o que acaba por enfraquecer o impacto gerado por suas aparições.
Kafka iniciou a fatura de seu romance pela última cena, na qual, Josef K., após um ano de processo contra o qual tenta obstinadamente se defender, é executado nas portas da cidade. Talvez isso tenha ocorrido por Kafka perceber que o único desenlace possível para o processo em que haveria de enredar sua personagem seria sua total aniquilação. Essa radicalidade do argumento não ocorre na dramaturgia de A Porta.
Seria o caso de indagar se, ao invés de Gregor K. “retornar à realidade” e a mais uma noite de insônia – a quarta – num movimento circular, o espetáculo não ganharia com o desdobramento do sonho até suas últimas consequências. Talvez essa opção obrigasse a dramaturgia a extrair de cada quadro mais que uma simples apresentação de personagens insólitas, e a aprofundar os liames de sua significação.
Fonte: Márcio Marciano / Foto: Fernando Martinez
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RESPOSTA: Em nossa apresentação no Festival de Teatro de Presidente Prudente sentimos falta do espaço para o encontro. A ausência de debate e contato com a platéia nos privou da possibilidade de dialogar com o público em geral e os artistas da região. No lugar do debate o festival trabalhou com a realização de uma crítica publicada em seu site no dia seguinte à apresentação. Desta maneira uma voz única e especializada deveria ser capaz de verificar se o espetáculo alcançou sua máxima efetividade. Esta crítica isolada, no caso de A Porta, feita pelo diretor e dramaturgo Marcio Marciano, corre assim o risco de estabelecer um padrão de leitura para os espetáculos realizados no festival. Porém, como foi este o único encontro que tivemos, gostaríamos de aprofundá-lo em debate e compartilhá-lo com o leitor deste blog.
Muito diferente da crítica recebida em Campinas pelo espetáculo, o texto de Marcio Marciano é rico na possibilidade de estabelecer um diálogo estético aprofundado nos elementos da dramaturgia, o que o autor caracteriza como ponto problemático do espetáculo A Porta. O leitor pode perceber que no princípio da crítica o autor estabelece a sua leitura da obra de Kafka como “marcada pela estranheza”, em que “as categorias de tempo, espaço e causalidade se embaralham irremediavelmente” e com narrativas marcadas por “tentativas falhadas de construção de sentido” . Após pouco falar sobre as máscaras, em que verifica uma gestualidade marcada pelo “amesquinhamento naturalista”, solicitando talvez deste jogo algo mais estilizado, como àquele encontrado na tradição da commedia dell’arte, (o que, diga-se de passagem, é impossível para o jogo com as máscaras realizadas em A Porta) o autor analisa a passagem da narrativa kafkiniana para a dramaturgia de A Porta.
Porém os elementos que marcaram previamente a sua leitura da obra de Kafka, na abertura da crítica, são deixados de lado e é com novas ferramentas que o autor vai passar a analisar a obra. E é aí que está o problema. Não está colocado de modo explícito em sua análise a escola de pensamento que o crítico partilha. De qualquer forma, esta crítica não é de modo algum superficial. Foge, assim, da tendência dominante de estabelecer a única possibilidade do teatro como crítica social. Mas não escapa da exigência de uma representação quando pede que o espetáculo possa “aprofundar os liames de sua significação”. Para isto aponta que os quadros não se diluam em “jogos pueris, o que acaba por enfraquecer o impacto gerado por suas aparições”. Ao traçar um paralelo com a obra O Processo (na verdade o espetáculo A Porta está dialogando muito mais com o livro desconexo de sonhos de Kafka), o autor valoriza a organização da narrativa de Kafka, em que iniciou a feitura da obra pela construção da sua ultima cena. A parte a fragilidade deste argumento, pois, como é sabido, Kafka tinha grande dificuldade em terminar seus romances (O Castelo está incompleto, América também, além de que o final de A Metamorfose era rechaçado pelo autor e o final de O Processo foi organizado pelo seu amigo Max Brod), o que queremos destacar é que com isto, a crítica pede da dramaturgia uma radicalidade que elimine seu caráter circular. Porém esta observação caminha por um direcionamento totalmente diferente daquele que a Cia Troada procurou estabelecer e é isto que desejamos compartilhar com o leitor.
Este movimento circular, com apresentação de cenas que não se desenvolvem com causalidade, é próprio da dramaturgia expressionista e do drama de estações, de que deriva A Porta. Assim, também, como todo o seu hermetismo está claramente dialogando com a escola simbolista, fundadora desta poética. Embora não esteja claro, podemos supor que a peça modelo com a qual a crítica trabalha em sua analise de A Porta, talvez se assemelhe muito mais às peças de tese (em seus vários modelos realista, naturalista, ou brechtiniano) em que o argumento se desenvolve no choque profundo entre as idéias representadas na obra, o que criaria uma rede de significações desdobradas entre um quadro e outro. Fica evidente que A Cia Troada e a crítica estão dialogando a partir de escolas distintas de teatro.
Porém, para enriquecermos o debate crítico dentro da própria linha de trabalho do autor, estabelecemos aqui o que diz Adorno sobre a leveza e o jogo com o absurdo no ensaio A Indústria Cultural. Talvez este argumento deixe mais claro a importância dada pela Cia Troada daquilo que foi denominado como “pueril” no desenvolvimento de cada quadro.
Segundo Adorno a diversão, entendida como arte leve, que se apresenta como distração, não é uma forma mórbida ou degenerada e “quem a acusa de traição aos ideais de pura expressão, se ilude quanto à sociedade” Por que esta forma de apreciação estética, por mais ingênua que pareça, coloca o individuo em um movimento intelectual através de um jogo de livres associações.
Mas como este tipo de conexão absurda, através de um livre jogo formal, também possibilita a significação, um conteúdo tolo qualquer normalmente é apresentado pelas obras da Indústria Cultural. Porém estes conteúdos nada mais são do que “clichês ideológicos de uma cultura em vias de liquidação” onde ética e bom acabam por vetar como “ingênuo” a diversão descontrolada. É desta maneira que a Indústria Cultural ataca nos dois planos e destrói as formas do leve e do sério.: “... embaixo elimina o que não tem sentido, e em cima o sentido da obra de arte.” .
Nos jogos absurdos de A Porta, fica claro que não desejamos aprofundar os liames de sua significação, mas, ao contrário, trocar a estreiteza do significado pela abertura dos sentidos. Assim o palco que a Cia Troada pesquisa é muito mais uma caixa de sensações, do que uma caixa de entendimentos. Vinicius Torres Machado - diretor e dramaturgo da Cia Troada.
Um comentário:
PARABÉNS, BELAS IMAGENS.
GARBEL
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